[Entrevista publicada no cat?logo da exposi??o ABRE ALAS 5, realizada entre 24 de janeiro e 28 de fevereiro de 2009 pela galeria A Gentil Carioca (Rio de Janeiro, Brasil)]

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André França. Dr. Freud`s Vacation #1 (in the Sahara desert), 2008. Impress?o de pigmento mineral sobre papel de algod?o. 50 x 225 cm.



Antonio Marcos Pereira entrevista André França


Antonio Marcos Pereira: Sua produção é normalmente muito sisuda e formalista, e acho que gosto muito dessa série porque ela é sorridente, porque há jogo e leveza aqui. O que o provocou a abordar logo Freud com tamanha desfaçatez?

André França: Primeiro, o desejo de realizar uma certa inflexão em meu trabalho, incorporando nele, de maneira clara, os elementos que você aponta - jogo, leveza - e também humor. O convite a uma leitura que privilegia a via do humor se apresenta desde o título, uma referência ao Sr. Hulot, de Tati. Segundo, a escolha de Freud se deu porque ele foi sempre objeto de uma extensiva iconografia sisuda. Sua figura alcançou a dimensão icônica, tal como ocorreu com Chaplin, Che Guevara ou Einstein, no entanto, assumindo sempre uma forma muito séria, sisuda, severa mesmo. Quis então partir daí, para chegar à leveza, ao humor, através de uma operação de contraste. Interessava, também, claro, jogar em cena, nestes trípticos, matizes da influente perspectiva freudiana, numa perspectiva crítica, inclusive.


AMP: Em um dos trabalhos dessa série com o Freud, ele está no deserto, dirigindo-se, muito articulado, para um urso polar. Acho esse trabalho muito interessante: ele parece, por um lado, comentar o conhecido dito popular, "Fulano está pregando no deserto". Mas há uma anomalia, uma virada meio surreal, que é a presença do urso. Além disso, a presença do urso polar me leva a uma conexão que me parece muito fértil e que não vejo ser muito comentada, entre Freud e o dadaísmo. É costumeiro falar de Freud e do surrealismo - as conexões são bem óbvias, há muita contaminação mútua e programática entre a psicanálise e o surrealismo. Mas creio que há uma conversação interessante entre dada e Freud ainda por ser feita. Por volta de 1912, quando Duchamp estava falando contra a "arte retiniana", Freud ainda estava por elaborar o Mal-estar na civilização, e não paro de pensar que há uma conexão interessante entre os dois. O que você acha dessas conexões?

AF: Sim, a conexão é pertinente. Tanto Duchamp quanto Freud realizaram o mesmo gesto fundamental. Este gesto radical foi o de “apontar para um outro lugar”. Freud apontou para aquilo que ele chamou de “a outra cena”, isto é, o campo do inconsciente; e Duchamp apontou para o também insuspeitado campo da latente artisticidade dos objetos ordinários, fabricados em série, que abundam em nosso cotidiano. Sempre que “apontamos para um outro lugar”, realizamos uma operação de deslocamento, e é isso o que faz surgir um urso polar no Saara, por exemplo, dentro de uma lógica onírica. Mas, nesta série, este deslocamento está também a serviço, no terceiro tempo do tríptico, do “encontro” e do estranhamento: o encontro com uma escada que, numa praia, brota do nada e se dirige para o céu; o encontro com um urso polar no Saara ou com animais selvagens que parecem pacientemente esperar por uma preleção. A idéia de “Freud pregando no deserto” está presente, sim, não há como fugir dela; afinal, encerrado o século de Freud, os homens continuam se movendo a partir da lógica do acúmulo de montinhos de dinheiro e deixando solta a pulsão de destruição nas guerras que nunca terminam e que nunca entendemos.
Penso que, partindo de Freud, isto é, de uma representação conformada a partir de uma lógica onírica, o dadá está sempre “no horizonte”; ou seja, a partir desta representação, nos aproximaremos mais e mais do dadá quanto mais resistente ela for à significação.
Em minha série mais recente, “Call me, love”, acho que Duchamp e Freud se encontram novamente, num trabalho em que temos um objeto curiosamente deslocado de sua função neutra, genérica, de comunicação, para agora quase pré-orientar a sua função dentro do campo da sexualidade.


AMP: Eu acho que o grande tema aqui é a transformação da psicanálise em um fato do mundo contemporâneo: onde quer que você vá, Freud já foi, e a psicanálise penetrou de tal forma em tantos setores da cultura que já se tornou algo encontrável no gelo polar, no Saara. Pra você é assim que funciona também?

AF: Sim, mas parcialmente, pois são duas as idéias aí. A primeira é exatamente esta que você aponta, a de uma disseminação fantástica de uma perspectiva teórica que circulou muitas vezes o globo. Por isso estes locais tão longínquos, ermos, inóspitos: a floresta Amazônica, o Pólo Norte, o deserto do Saara, a praia em frente à imensidão do mar. No entanto, esta idéia já não está aí inteira, pois ela é basculada pelo que falamos acima sobre o “pregando no deserto”. Ou seja, apesar da propagação incrível deste conjunto de idéias, os homens muitas vezes preferem ignorá-las, desconsiderá-las. E eis que continua o tempo da guerra.
Mas a segunda perspectiva que quis colocar aí diz respeito à situação de crise ecológica contemporânea no planeta. Nestas suas “férias”, Freud vai a estes enormes ecossistemas, santuários ecológicos, e a sua “presença” ali, não pode deixar de presentificar uma observação crítica em relação aos atos destrutivos que os homens vêm dirigindo a estes e outros ambientes. Observando a série desta perspectiva, o seu humor praticamente se esvai.
A última peça da série (Freud no cinema) retoma a primeira perspectiva e apresenta de forma sintética, pontual (uma única imagem, não um tríptico) a influência de Freud sobre o campo da cultura e da arte.


AMP: O que é essa performance sua, esse negócio de teatralizar Freud com um bonequinho? Você sai com isso do lugar do fotógrafo da captura, do sujeito que se dedica a registro de uma certa factualidade, que é seu lugar habitual, e passa para o lugar do fotógrafo como encenador, como um sujeito que incorpora o ethos do teatro, da criação da cena e da incorporação de um modo narrativo. O que você pensa sobre essa minha leitura?

AF: Creio que o “lugar” desde onde o fotógrafo trabalha – o que inclui a maneira como ele se relaciona com o que está à sua frente – é para ele sempre uma questão. É sempre um ponto ou uma zona em torno da qual circulamos, assumindo uma hora uma posição, outra hora uma diferente. Em aproximadamente metade das séries que realizei até aqui (a primeira metade sobretudo), a perspectiva que reina é a da não alteração, não intervenção física sobre o objeto (freqüentemente imóvel) ou local fotografado. Não considero isso o mesmo que “registro”. Associa-se “registro”, muitas vezes, à idéia de uma captura imparcial da imagem daquilo que está em frente à câmera. Assim considerado, registro é algo que não existe em fotografia, afinal, diversas escolhas (como distância ao objeto fotografado, lente utilizada, angulação da câmera, abertura do diafragma, velocidade do obturador, filme utilizado e outras) destroem a idéia de apreensão imparcial de uma porção da realidade e são, na verdade, as vias através das quais trabalha a subjetividade do artista. Este é um ponto interessante, pois acho que ainda há alguma confusão sobre isso por aí. Às vezes ouvimos alguém comentar que um certo trabalho é da ordem do “registro”, como se isso denotasse uma menor quantidade de trabalho criativo por parte do fotógrafo. Isso não é verdade. Não há menos trabalho criativo, há uma postura diferente em relação ao espaço em frente à câmera. Um determinado fotógrafo, trabalhando em um certo projeto, pode chamar isso (uma diretriz de não intervenção física) de “respeito” ou de “postura ética” frente à “realidade”. Foi deste “lugar” que realizei, por exemplo, as séries “Houses and Time” e “The Last Stop”. Gosto deste lugar. Mas também me interesso pelo outro, aquele onde operamos fisicamente sobre os elementos físicos que estão em frente à câmera (como fiz em “Dr. Freud's Vacation”) ou através de outras estratégias de recombinação (como fiz em “Nightswimming”). Tais procedimentos de “encenação”, ou, ao contrário, aqueles de uma postura “mais neutra”, “mais isenta” (já que é difícil falar em registro) acabam, no meu caso, por se delinear e se impor logo cedo, no início da reflexão sobre cada projeto - e em função de sua natureza. Quanto aos motivos associados à eleição do objeto, uma representação de Freud, creio já ter esclarecido este ponto em respostas acima.


AMP: A quem se dirige sua "angústia de influência"? Quem são os modelos passados que balizam seu trabalho, com os quais você ambiciona dialogar e dos quais você quer se ver livre?

AF: Em épocas distintas de minha formação e pelos diferentes motivos descritos, estes são os nomes: Edward Weston (pelo interesse delicado no campo dos objetos, da natureza, dos materiais naturais); William Eggleston (pelo trabalho com a paleta de cores e também pelo interesse nos objetos); Edward Hopper (pela representação da solidão, do silêncio, da dificuldade de comunicação); Michelangelo Antonioni (pelos mesmos últimos motivos); Helmut Newton (pelo desejo convertido em sensualidade que, para mim, retorna de novo a desejo – pela fotografia); Cindy Sherman (pelo procedimento da encenação e a referência à imagem cinematográfica).



André França é artista/fot?grafo.
Antonio Marcos Pereira é crítico de literatura e professor da UFBA.




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