[Veja as fotografias]


Vanitas contemporânea:
provocações de uma série de André França

Alejandra Muñoz*



Uma série de dezenove fotografias coloridas compõe o trabalho de André França. Há alguma relação cabalística com esse número? Não sei dizer. Diante do tema, seria pleonasmo ou redundância falar de mergulho ou imersão na imagem, mas são fotos que obrigam a um exercício perceptivo de transposição do campo superficial das aparências. Primeiro, cabelos... depois, corpos se revelam... é difícil estabelecer uma escala... cores e estampas sob luz diáfana... breves sombras... texturas sutis... mas, que significam?

O inglês Vanishing se traduz como desaparecimento, um processo de definhar ou acabar. De início, penso no que pode propiciar ou acelerar a corrosão ou desintegração de um corpo: incineração, “cal viva”, ácido, bactérias e vermes. Mas os corpos, mergulhados na textura líquida, não mostram ataque químico ou deterioração da matéria. O título da obra me remete, então, à marca de um sabão em pó conhecido no Brasil. Nesse sentido, a série poderia ser percebida como mais uma contribuição artística ao que chamo “linhagem pop da higiene doméstica”, iniciada em 1924 por Davis com Odol, consagrada em 1964 com as caixas de Brillo de Warhol, hoje banalizada com as latas-brinde de Omo desenhadas por Romero Britto. Porém, diferentemente de Odol ou Brillo, aqui não temos apenas a imagem do produto Vanish que poderia produzir a espuma que vemos nas fotos: acrescenta-se uma ação no gerúndio, vanishing, uma ação contínua, ainda não finalizada, reforçada por uma seqüência narrativa de imagens de objetos em um meio espumoso.

Em uma tentativa de afastamento da prosaica referência consumista e, pior, de uma imagem de feminilidade atrelada ao tanque, lembro da cor dominante da embalagem do sabão Vanish: rosa-pink. E, paradoxalmente, os objetos submersos emergem agora reconhecíveis: barbies... Poderia ser mais uma alusão pop? Sim, sem dúvida... porém, o universo rosa, perfeito e impessoal desses ícones da beleza plastificada, aparece aqui subvertido. Um presságio macabro da neurose contemporânea em torno dos padrões de beleza? É difícil não pensar em lipoaspiração, silicone, esteróides, botox, liftings, bulimia, anorexia... o cardápio clássico das alterações artificiais contemporâneas de um corpo desonesto que se legitima não pelo seu conteúdo senão por uma imagem que é negação de sua natureza.

A água, de modo geral, é um elemento tradicional nas alusões ao erotismo, principalmente o feminino. Mas o binômio água e figura feminina, aparece aqui com um caráter ambíguo, tanto afirmação da imagem da Iemanjá baiana, quanto inversão física e simbólica da mítica Ofélia de Millais. A figura da espuma me lembra a iconografia do nascimento de Vênus (ou Afrodite), do sêmen de Urano na espuma do mar, enquanto esconde, cobre ou revela as barbies, em uma possível metáfora dos primórdios da erotização infantil através do mundo lúdico das bonecas.

Em termos do que Rubens Fernandes chama “fotografia expandida”, das relações entre o inteligível e o sensível na imagem fotográfica, Vanishing oferece uma estratégia de interferência no “mundo visível” que atualiza e reivindica a idéia de natureza morta na contemporaneidade - talvez, a idéia de uma natureza assassinada diante da imagem de corpos boiando virados para baixo.

A série de André França retoma um tipo específico de natureza morta, a vanitas, uma variedade de natureza morta alegórica na qual os objetos representados aludem à efemeridade da vida humana e das coisas materiais. A denominação remete ao célebre versículo latino de Eclesiastes, “vanitas vanitatum, et omnia vanitas” que, em tradução livre, significa “vaidade das vaidades, é tudo vaidade”. Em geral, a vanitas apresenta relógios, livros, jóias, moedas e outros objetos evocativos dos valores transitórios dos homens. Tradicionalmente, a introdução de uma caveira remete, de modo explícito, para a idéia da morte ou memento mori (“lembra-te que morrerás”), reforçando a finitude da nossa existência ante toda e qualquer preocupação.

Em Vanishing não há caveira: o memento mori se constrói com a repetição das barbies inanimadas e se enfatiza na última imagem sem objetos, apenas com a dúbia imaterialidade de um meio aquoso... espuma de sabão em pó?



P.S. – O artista me convidou para escrever sobre Vanishing mostrando-me apenas as fotografias, sem comentar o processo de realização do trabalho. Aceitei o convite, escrevendo o texto ao ver a série pela primeira vez. Após concluir esta reflexão, encontrei com André França: o meio aquoso no qual estão as bonecas é gelo. Devo confessar que fiquei perplexa: barbies congeladas! Mas o efeito colateral da crítica de arte é também a surpresa... pelo menos para quem escreve. A poética do congelamento reforça a ideia de memento mori, principalmente por sua vinculação entre a razão essencial da fotografia, a retenção do momento, e a busca pela eterna juventude, o esforço por parar ou congelar o tempo. Em outras palavras, uma vanitas cristalizada na fugacidade do instante.



* Alejandra Hernández Muñoz, uruguaia, residente em Salvador desde 1992, é arquiteta, mestre em Desenho Urbano e doutoranda em Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAU/UFBA). Foi professora de Historia e Teoria da Arquitetura na mesma instituição (1998 a 2001) e, desde 2002, é professora efetiva de História da Arte da Escola de Belas Artes (EBA/UFBA). Exerce diversas atividades relacionadas às Artes e Arquitetura, produzindo textos de história e crítica, e participando de júris e comitês de seleção. Foi curadora de diversas mostras em Salvador/BA, Recife/PE, São Paulo/SP e Belém/PA. É membro do Conselho da Fundação Hansen Bahia (São Félix/BA), da Comissão de pauta da Pinacoteca da UFAL (Maceió/AL) e da equipe curatorial do Programa Rumos Artes Visuais 2011-2013 do Instituto Itaú Cultural.