Antonio Marcos Pereira entrevista André França
Antonio Marcos Pereira: Sua produção é normalmente muito sisuda e formalista, e acho que gosto muito dessa série porque ela é sorridente, porque há jogo e leveza aqui. O que o provocou a abordar logo Freud com tamanha desfaçatez?
André
França: Primeiro, o desejo de realizar uma certa inflexão
em meu trabalho, incorporando nele, de maneira clara, os elementos
que você aponta - jogo, leveza - e também humor. O
convite a uma leitura que privilegia a via do humor se apresenta
desde o título, uma referência ao Sr. Hulot, de Tati.
Segundo, a escolha de Freud se deu porque ele foi sempre objeto de
uma extensiva iconografia sisuda. Sua figura alcançou a
dimensão icônica, tal como ocorreu com Chaplin, Che
Guevara ou Einstein, no entanto, assumindo sempre uma forma muito
séria, sisuda, severa mesmo. Quis então partir daí,
para chegar à leveza, ao humor, através de uma operação
de contraste. Interessava, também, claro, jogar em cena,
nestes trípticos, matizes da influente perspectiva freudiana,
numa perspectiva crítica, inclusive.
AF:
Sim, a conexão é pertinente. Tanto Duchamp quanto Freud
realizaram o mesmo gesto fundamental. Este gesto radical foi o de
“apontar para um outro lugar”. Freud apontou para aquilo
que ele chamou de “a outra cena”, isto é, o campo
do inconsciente; e Duchamp apontou para o também insuspeitado
campo da latente artisticidade dos objetos ordinários,
fabricados em série, que abundam em nosso cotidiano. Sempre
que “apontamos para um outro lugar”, realizamos uma
operação de deslocamento, e é isso o que faz
surgir um urso polar no Saara, por exemplo, dentro de uma lógica
onírica. Mas, nesta série, este deslocamento está
também a serviço, no terceiro tempo do tríptico,
do “encontro” e do estranhamento: o encontro com uma
escada que, numa praia, brota do nada e se dirige para o céu;
o encontro com um urso polar no Saara ou com animais selvagens que
parecem pacientemente esperar por uma preleção. A idéia
de “Freud pregando no deserto” está presente, sim,
não há como fugir dela; afinal, encerrado o século
de Freud, os homens continuam se movendo a partir da lógica do
acúmulo de montinhos de dinheiro e deixando solta a pulsão
de destruição nas guerras que nunca terminam e que
nunca entendemos.
AF:
Sim, mas parcialmente, pois são duas as idéias aí.
A primeira é exatamente esta que você aponta, a de uma
disseminação fantástica de uma perspectiva
teórica que circulou muitas vezes o globo. Por isso estes
locais tão longínquos, ermos, inóspitos: a
floresta Amazônica, o Pólo Norte, o deserto do Saara, a
praia em frente à imensidão do mar. No entanto, esta
idéia já não está aí inteira, pois
ela é basculada pelo que falamos acima sobre o “pregando
no deserto”. Ou seja, apesar da propagação
incrível deste conjunto de idéias, os homens muitas
vezes preferem ignorá-las, desconsiderá-las. E eis que
continua o tempo da guerra.
AF: Creio que o “lugar” desde onde o fotógrafo trabalha – o que inclui a maneira como ele se relaciona com o que está à sua frente – é para ele sempre uma questão. É sempre um ponto ou uma zona em torno da qual circulamos, assumindo uma hora uma posição, outra hora uma diferente. Em aproximadamente metade das séries que realizei até aqui (a primeira metade sobretudo), a perspectiva que reina é a da não alteração, não intervenção física sobre o objeto (freqüentemente imóvel) ou local fotografado. Não considero isso o mesmo que “registro”. Associa-se “registro”, muitas vezes, à idéia de uma captura imparcial da imagem daquilo que está em frente à câmera. Assim considerado, registro é algo que não existe em fotografia, afinal, diversas escolhas (como distância ao objeto fotografado, lente utilizada, angulação da câmera, abertura do diafragma, velocidade do obturador, filme utilizado e outras) destroem a idéia de apreensão imparcial de uma porção da realidade e são, na verdade, as vias através das quais trabalha a subjetividade do artista. Este é um ponto interessante, pois acho que ainda há alguma confusão sobre isso por aí. Às vezes ouvimos alguém comentar que um certo trabalho é da ordem do “registro”, como se isso denotasse uma menor quantidade de trabalho criativo por parte do fotógrafo. Isso não é verdade. Não há menos trabalho criativo, há uma postura diferente em relação ao espaço em frente à câmera. Um determinado fotógrafo, trabalhando em um certo projeto, pode chamar isso (uma diretriz de não intervenção física) de “respeito” ou de “postura ética” frente à “realidade”. Foi deste “lugar” que realizei, por exemplo, as séries “Houses and Time” e “The Last Stop”. Gosto deste lugar. Mas também me interesso pelo outro, aquele onde operamos fisicamente sobre os elementos físicos que estão em frente à câmera (como fiz em “Dr. Freud's Vacation”) ou através de outras estratégias de recombinação (como fiz em “Nightswimming”). Tais procedimentos de “encenação”, ou, ao contrário, aqueles de uma postura “mais neutra”, “mais isenta” (já que é difícil falar em registro) acabam, no meu caso, por se delinear e se impor logo cedo, no início da reflexão sobre cada projeto - e em função de sua natureza. Quanto aos motivos associados à eleição do objeto, uma representação de Freud, creio já ter esclarecido este ponto em respostas acima.
AF: Em épocas distintas de minha formação e pelos diferentes motivos descritos, estes são os nomes: Edward Weston (pelo interesse delicado no campo dos objetos, da natureza, dos materiais naturais); William Eggleston (pelo trabalho com a paleta de cores e também pelo interesse nos objetos); Edward Hopper (pela representação da solidão, do silêncio, da dificuldade de comunicação); Michelangelo Antonioni (pelos mesmos últimos motivos); Helmut Newton (pelo desejo convertido em sensualidade que, para mim, retorna de novo a desejo – pela fotografia); Cindy Sherman (pelo procedimento da encenação e a referência à imagem cinematográfica).
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